terça-feira, 30 de abril de 2013

.Empoderamento, entenda o que é, encontre o seu e livre-se do que é "faux"



Cláudia Rodrigues*


Para Juliana Carvalho, por sua capacidade de entrega impressionante




A palavra empoderamento, que não consta no meu Aurelião, foi usada com maestria pela antropóloga Robbie Davis-Floyd como possibilidade prática de resolver conflitos culturais que impedem as mulheres de parir livremente. Nascida do original inglês empowerment, o termo ganhou fama no Brasil como uma das melhores explicações para a necessidade da (re)aquisição de habilidade emocional, mental e corporal que colocaria a mulher em conexão com uma capacidade fisiológica importante do corpo feminino que vem sendo boicotada por constantes choques culturais. “Importante” aqui é termo subjetivo e deve ser refletido.

Empoderamento não é definitivamente uma força de vontade e não é o desejo somente, mas o desenvolvimento da habilidade para conectar o desejo, força vital máxima do corpo humano, aos prazeres culturais, orais, obsessivos, psicopáticos, masoquistas e inevitavelmente esquizos que criamos para nos distrair. Talvez também para tapar buracos, defender fronteiras, mas muitas vezes é mero deleite. Cinema é puro deleite. Toda forma de arte de algum jeito, em algum cantinho, é deleite de mente sã, de corpo ansioso pelo contato com seus desejos mais profundos. Entramos no universo do deleite, sem compromisso, sem responsabilidade e do empoderamento, que exige mais do que conhecimento, autoconhecimento, responsabilidade emocional e corporal. Artes do corpo vivo.

E aí, inevitavelmente, cai-se na história do sexo e do parto, da amamentação e da ejaculação, os leites masculino e feminino da vida. Não vem ao caso discutir se o leite do homem ao longo da história foi beneficiado e a mulher foi traída pela sociedade machista, até porque é tese mais do que batida e comprovada nas moedas acadêmicas. Sobre empoderamento se pode afirmar muita coisa, mas não que ele ocorra sem que todas as camadas do corpo e consequentemente do cérebro tenham sido minimamente tocadas. Então já podemos afirmar que empoderamento pode trazer deleite? Seria esse um deleite mais profundo, mais intenso e duradouro com outras conexões para a maternidade? Who knows!?

O emaranhado de tecidos de cada ser humano é próprio. Nos  afetou ou afetamos, algo mudou. A troca ou mesmo as dificuldades da troca e do contato com tudo o que está dentro de nós e tudo o que está fora do nosso corpo é única, não se transfere posto que na transferência cria-se algo novo. Por isso um professor ao dar uma aula para 25 alunos está produzindo 25 aulas diferentes. Partindo-se do princípio que nossas trocas diárias vão muito além de aulas, leituras, cinema, pessoas, Estados, política, ambiente, conflitos e amores, então chegamos ao caos que está fora. Ou seria dentro? Quem sabe a organização interna esteja totalmente dependente e massacrada pelo andamento do que está fora de nossos corpos!

São tantas as informações que vêm de fora do nosso corpo biológico  que já impedimos a troca, o fora nos invade, passamos a boicotar e adoecer o nosso ser vital, fortalecendo o eu cultural de forma desequilibrada, irracional e perversa. E óbvio, não estamos falando de possibilidades no cinema, mas de parte importante da publicidade, programas de televisão e o tal mercado do prazer consumista, que está aí providenciando formatações de como devemos nos comportar e adestrar nosso bicho interno, vestindo-o com capas e contracapas pasteurizadas de comportamento e aparências. O tempo todo.

O mercado consumista não se restringe às futilidades da moda, já faz tempo que invadiu o corpo humano com cirurgias mirabolantes, utilizadas de forma inútil. E claro que não estamos falando da cesariana como intervenção para salvar vidas de estimados 15% da população humana.
Entretanto podemos afirmar que quando um país tem um índice de cesarianas maior do que 60%, ele está desempoderado em sua relação com a saúde da mulher, a assistência está desempoderada e as mulheres também estão desempoderadas em relação aos seus desejos e suas vontades, seus saberes, seus traumas, seus corpos no mundo, corpos mais sociais e culturais do que biológicos,  já acostumados a serem mal atendidos, mal recebidos, mal vistos.

Para uma mulher parir o mais agradavelmente possível, o ambiente ideal deveria ser receptivo, amoroso, alegre, bem assistido. Se o que entendemos como bem assistido é estar em uma sala muito iluminada, cercada por profissionais com aventais e máscaras, equipamentos de última geração para que qualquer intercorrência seja imediatamente reparada, então esse é o nosso lugar de empoderamento, dentro de nossos conceitos adquiridos socialmente, culturalmente. É preciso trabalhar na conexão entre o "eu" visceral, que necessita calma, quietude, iluminação branda, solidão ou presença de pessoas íntimas escolhidas e esse "eu" cultural e social adquirido ao longo da história, que também necessita as luzes e os profissionais todos, os equipamentos todos. 


Por isso é perigoso vender um pacote de empoderamento e tenho certeza que Robbie Davis-Floyd quando usou o termo não estava querendo passar receita de parto domiciliar a perder de vista. Simplesmente porque não existe receita única para melhorar a comunicação entre o nosso ser visceral-ancestral e o cortical-moral. Infelizmente a cisão entre eles tem multiplicado as doenças da civilização como cânceres, síndromes, depressões. Na área da obstetrícia há um maior número de recém-nascidos prematuros com problemas cardiorrespiratórios em todos os países em que a cesariana virou lugar-comum. Sim, nossa civilização vai fundo, chega a agredir a vida recém-nascida. Nem vamos falar de vacinas dadas aos bebês nas primeiras horas de vida ou da praxe de separação logo após o nascimento, quando medir, pesar e banhar o bebê é considerado mais seguro do que dar a ele a chance de aprender a mamar nos primeiros momentos de vida, justamente quando seu corpo é mais capaz. Haja empoderamento para uma mulher sentir-se a pessoa que melhor pode cuidar do seu filhote nas primeiras horas de vida. Não deveria ser esse um direito fisiológico e biológico respeitado por quem presta assistência? E quem pariu Matheus não deveria saber embala-lo ao som do coração? Por quê não? O que impede a realização desse "pecado" de amar ao primeiro olhar, ao primeiro toque o próprio filho que acabou de sair da barriga? Muitas coisas, todas culturais; cultura médica, cultura familiar, cultura psíquica que estiveram ali naquele corpo durante longos anos, inscrevendo travas, medos, horrores, dramas existenciais.

A humanização do parto e do nascimento, movimento que inclui saberes e práticas de atendimento seguro e criticamente responsável ao sistema de atendimento tradicional das instituições públicas e privadas no mundo inteiro, empodera-se coletivamente agregando mulheres que tiveram sonhos de parturição destruídos pelo sistema obstétrico vigente, também aquelas que simplesmente gostaram de parir, as que tiveram partos depois de cesarianas, simpatizantes, médicas, médicos, enfermeiras e enfermeiros, obstetras e claro, as parteiras.
Empoderar-se coletivamente pode fazer parte ou não, apropriar-se da dança particular de raciocínios e sentimentos que envolvem a gestação, o parto e a amamentação é uma escolha de algo grau de responsabilidade. E é diante dessa palavra, responsabilidade, que desmorona o castelo de areias de um empoderamento faux.

Para algumas mulheres a escolha de um parto na água como ideal de parturição, porque ela viu 50 filmes no youtube dos mais lindos partos na água, pode virar um empoderamento falso, pior do que isso, boicotador do parto próprio dela, não acessado por intervenção cultural. Sim, até a inocente piscina de parto pode esconder o vilão cultural boicotando nosso ser vital, capaz de salvar e salvar-se na luta pela sobrevivência. Por essas e por outras não se pode dar receitas, apenas ferramentas que devem ser usadas de maneira pessoal e intransferível. Se a pessoa ganha um martelinho australiano da melhor qualidade com demonstração técnica e prática para uso delicado e especifico, mas decide bater na própria na cabeça até quebra-lo, isso passa a ser problema dela.

Enquanto isso, sofrem as amorosas doulas e parteiras com as clientes que não chegam lá. É da vida, era para ser assim, foi uma sequência de fatores, houve um motivo fisiológico para que no lugar do parto entrasse a cesariana salvando as vidas. É verdade, por tudo isso e também sempre por um milionésimo a menos de responsabilidade pessoal  fortalecedora do interno, de tal maneira que fosse possível derrotar o eu cultural no clímax do parto, com a expulsão do feto sentida como solução para dar cabo do corpo simbiótico.

“Não lembro”, é o que dizem as parturientes sobre falas, ações, fotos e detalhes trazidos pela assistência no pós-parto. O parto é fisiologicamente próprio, como qualquer outra capacidade fisiológica. Ninguém pode fazê-lo por aquele corpo feminino, naquele momento, daquele jeito. O ato de parir é foco puro em si mesmo, basta-se a si próprio.

Na humanização costuma-se soltar a mulher para parir, ninguém fala onde ela deve ficar, em que posição deve permanecer; presta-se auxilio, providencia-se uma almofada, um banho de chuveiro, alguma massagem, consolo, mas de jeito algum deita-se ou amarra-se a pessoa. É comum que a mulher escolha parir de quatro apoios, deitada de lado, em pé, de joelhos, acocorada, numa banheira com água, debaixo do chuveiro.

A mulher escolhe, empodera-se da sua dor, do seu desconforto, do seu medo da dor e anda, acomoda-se, desacomoda-se, incomoda a equipe, que deve servi-la, ajudá-la a não  atrapalhar a comunicação entre o que ela pensa, sente e o que precisa descobrir como fazer. Se a equipe atrapalha é ruim porque a parturiente pode perder-se para fora. Sempre vale lembrar que não são poucos os exemplos de partos bem-sucedidos em ambiente e atendimento adversos.

O parto no meio da rua, no frio, atendido por uma senhora que estava passando, é fruto de um corpo interno que sobrepujou o externo de maneira espetacular, é um corpo empoderado em relação ao ato de parir. Pode ser o corpo de uma dona que sofreu repressões de todo tipo, mas nenhuma delas foi capaz de abater a habilidade de expelir um feto maduro e são. Pode ser que essa dona não tenha a mesma pulsação vital para aleitar, praticar a entrega necessária que exige o aleitamento de um recém-nascido humano, bichano altamente dependente, que leva cerca de 8 meses para ficar em quatro apoios, mas isso são outros quinhentos, de outras mamas atávicas dentro de nós.
Essa mulher, que por acaso pariu na rua, ficou meses fazendo a interface entre o seu eu visceral-ancestral e o seu eu cortical-moral? Provavelmente não, porque esse exercício de comunicação pessoal é rotineiro, constante e sua espontaneidade é nata, genuína, não necessariamente adquirida. Para algumas mulheres, entretanto, as impressões culturais e sociais adquiridas, causam vazios entre o que desejam e o que vislumbram. 

É por isso que sou favorável ao parto em casa, mas não à moda do parto em casa. Parto em casa é um tipo de empoderamento de parto, mas não é o único possível. É para as mulheres que ficaram tanto tempo no youtube assistindo filmes de parto quanto em silêncio imaginando em que local se sentiriam melhor e mais seguras, sinceramente. Vale o mesmo para o polêmico parto desassistido. Mais comum na Europa do que no Brasil, ele é visto como perigoso pela assistência do mundo inteiro. É curioso até que a assistência se preocupe mais com os partos raríssimos e de índices de intercorrências insignificantes, do que com o aumento de uma massa de mulheres que migram para o parto assistido em casa, impulsionadas por movimentos externos aos seus corpos, seus saberes, suas crenças, muitas vezes bombardeadas por excesso de informações técnicas. Que prazer assistir uma jovem médica em trabalho de parto em casa sem querer saber a quantas estava em dilatação, sem toques, sem saber se estava com colo afinado ou não, apenas sentindo e trabalhando seu corpo, recebendo a transformação, sendo apenas uma mulher, uma fêmea viva prestes a dar à luz!

Pesquisa-se pouco sobre as crenças pessoais das mulheres no parto, seus sentimentos reais, tecidos por todo caldo cultural a que foram submetidas. Esse é um dos vazios nucleares de parte importante dos pensadores da humanização, muitas vezes mais voltados em esclarecer o quanto o parto humanizado é seguro com base em dados e estudos. Mais importantes para enfrentar o status quo de evidências ultrapassadas, baseadas em fatos obscuros e crenças médicas confortáveis, os argumentos meramente técnicos podem cair como um alimento indigesto para quem quer apenas parir e precisa mais do que tudo, digerir as próprias crenças pessoais. A revolta contra os sistema externo tem seu lugar no coletivo, mas do ponto de vista pessoal a revolta deve ser mais interna do que externa, mais focada nas crenças internas do que nas externas.


Parto é crença, o fato de estar classificado de N formas entre as evidências, com uma diversidade de estatísticas riquíssima nos últimos anos, parto é crença e crença é buraco, estratégia e solução. Uma mulher que acredita ser capaz de gestar um “bom bebê” está na frente da fila para parir um bebê saudável com suas próprias forças, sob sua responsabilidade. 




Conhecer o próprio corpo, limites da dor, sentimentos e estados psíquicos diante de adversidades é empoderamento. Praticar escolhas a partir dessa apropriação é a única coisa a ser feita. Informação e conhecimento histórico fazem parte de um pacote mais palatável do que informações e conhecimento estritamente técnicos.
Assim que se a pessoa leu de fonte segura que circular de cordão não enforca bebê, mas aos cinco meses de gestação ouve do seu médico que ela vai passar por cesariana porque o bebê está com o cordão enrolado no pescoço, ela deve saber o que pensar. Não, não sabe, porque o que ela não sabe de fato é o que sente e quem não sabe o que sente não sabe fazer porque o seu fazer já foi pensado. Tipo dependência de trash food.

Parto é crença porque parto é sentimento e sentimentos são hormônios. Tá, então dá lá uma ocitocina sintética para ela a fim de impulsionar a adrenalina. E aí as contrações aumentam, a ocitocina fica a serviço de se contrapor à adrenalina. É um parto feminista das antigas esse que leva ocitocina sintética porque o negócio dessa ocitocina é enfrentar a adrenalina, que muitas vezes ganha a parada: muita contração, pouca dilatação. A ocitocina natural que corre na mulher durante o parto é frágil, se ela não for frágil o bastante, a dilatação não ocorre.
Parto de muita ocitocina e pouca adrenalina é aquele com dilatação e pouca contração, arrastado, mas é fato que na hora final, no momento da expulsão, as duas se juntam, se entendem, se superam naturalmente. Mexer com essa dança aí pode ser uma opção, mas se um caquinho a mais for inadequado, vai ser dose para leoa nenhuma conseguir dar cabo da parturição.

E é fácil errar na intervenção química. Há mulheres que jamais deveriam levar ocitocina, como aquelas que têm contrações, mas dilatação lenta, aquelas cuja ocitocina natural vinha batalhando para dançar com a adrenalina de um jeito sinuoso. "Vem adrenalina, me traz essa contração que te mostro como me entrego, venha musculatura estriada, que eu te enlaço com meu sistema límbico solto, com minhas lágrimas, meu desejo de ver esse bebê aqui fora."

Contrações se buscam na moral, no exercício físico, no jogo de cintura bem colocado numa bola suíça, no agachamento, nas longas expirações que abraçam a dor possibilitando a dilatação. Dilatação bloqueada, parada é medo vestido de coragem. Dilatação lenta e progressiva é entrega, humildade, mas humildade nem de longe, vale ressaltar,  é “ensina-me a parir”.

Empoderar-se, apropriar-se do próprio corpo com todos os seus tecidos endodérmicos, ectodérmicos e mesodérmicos é a forma prática mais segura de parir, acompanhada ou não. Quem sou eu para condenar um desassistido, um parto com parteira, enfermeira ou com médico em um hospital se aquela mulher é capaz de juntar saberes sobre si mesma aos sentimentos em relação a ela mesma, ao feto e ao mundo!?

Mas sou gente grande para dizer que há muitos equívocos entre o que se diz e o que se entende, o que se pensa e sente-se em relação ao parto. E maior ainda para defender os bebês, que independentemente da forma como nascem, têm uma vida inteira de inscrições e reparações pela frente. 

*É jornalista e oficineira de Gravidez, Parto & Simbiose e Inscrições Corporais. Não é mestre, nem doutora e nem vai ser, a menos que Robbie Davis-Floyd, Melania Amorim, Simone Diniz ou alguma ótima aluna delas venha abrir uma linha de pesquisa na UFRGS.






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